“Existiu há tempos um reinado onde pessoas do bem e pessoas do mal conviviam harmoniosamente, quase sempre. Certa feita, naquele reinado, apareceu um peregrino que, devido a forças telúricas, se tornou rei.
Este rei, aparentemente não gostava do seu povo. Apenas bajulava os estrangeiros que vinham trazer vantagens pecuniárias ao reinado, das quais uma certa quantia ia para sua Almoniere já abarrotada de ouro.
Muito bem, passou-se o tempo e tal reinado ia chegando ao fim. O reizinho, todo impoluto e dono de si decidiu que ainda não era a hora de deixar o trono.
E quando lhe argumentaram que o povo não o amava tanto assim, ele arguiu sua máxima: “O povo, ora, o povo é só um detalhe”. E lançou-se, e aos seus bajuladores, na empreitada pela permanência no trono que usurpara dos nativos.
O reizinho que o antecedera, findada todas as possibilidades de se manter no trono, suspeita-se ter ido a terras não muito distantes buscar aquele predestinado para o substituir. Eis que não confiava nos acólitos que o rodeavam.
Pois bem, tomado o trono, o reizinho tornou-se absoluto, inimigo de seu povo e, pasmem, senhores!, até do antecessor, atacando-o de todas as formas.
Porém, quando se esperava que este ex-rei viesse com sua legião para o combate, para reaver o trono, capitulou, juntou os poucos combatentes que lhe restaram e foi emprestar apoio ao reizinho absoluto.
Então, o reizinho, sentindo-se fortalecido, colocou ainda mais à mostra sua peculiar sanha persecutória e de vingança a quem quer que se atrevesse a dificultar sua caminhada.
Ouviu-se nos corredores do palácio, seu tonitruar inconfundível, quando se dirigia aos acólitos: “Quem não está comigo é meu inimigo, e aos inimigos, a forca!”.
Consta que sua primeira vítima teria sido uma inocente donzela à qual havia assediado para que se unisse a ele e aos seus, na batalha pela permanência no trono, ao qual se apegara de forma incontinente.
A donzela, de um vilarejo distante, muito amada pelos moradores do local, teve a ousadia de dizer a um dos acólitos do rei que sim, estaria ao lado dele, mas precisava também levar consigo na jornada outra donzela, de outro vilarejo, na busca por um dos assentos do burgo.
Não satisfeito com a “infidelidade” da donzela, o reizinho a rechaçou. Ela, então, muito triste, foi reclamar sua sorte com a amiga, temendo o pior.
Esta, então, lhe apresentou um jovem rebelde que, no condado, arregimentava bravos e corajosos guerreiros para reaver, para o povo, o trono usurpado.
Enfurecido, o reizinho lançou mão de sua mais habitual resposta, que era o uso do mecanismo do poder sem respeitar o limite da ética, do pudor e do direito do outro: convocou seu mais valioso bobo da corte para que fizesse o serviço sujo, em seu nome, e assim colocasse uma trava nos propósitos da donzela….”.
PS: Infelizmente não se sabe como a narrativa termina, porque seu autor, um degredado daquele mesmo reinado, foi encontrado boiando no grande lago dos mandriões.
Como vivia isolado pelos cantos, dormindo onde lhe dessem abrigo, comendo os restos até dos cães, não foi difícil incutir no povo, a verdade oficial, de que ele, bêbado, caiu naquele lago e se afogou….
Comentários fechados.