LIVRO-DENÚNCIA
Os piratas da política
13/12/2011 na edição 672
A privataria tucana, de Amaury Ribeiro Jr., 344 pp., Geração Editorial, São Paulo, 2011; R$ 34,90
[textos extraídos do site da editora; intertítulo do OI]
A Privataria Tucana é o resultado final de anos de investigações do repórter Amaury Ribeiro Jr. na senda da chamada Era das Privatizações, promovida pelo governo Fernando Henrique Cardoso, por intermédio de seu ministro do Planejamento, ex-governador de São Paulo, José Serra. A expressão “privataria”, cunhada pelo jornalista Elio Gaspari e utilizada por Ribeiro Jr., faz um resumo feliz e engenhoso do que foi a verdadeira pirataria praticada com o dinheiro público em benefício de fortunas privadas, por meio das chamadas offshores, empresas de fachada do Caribe, região tradicional e historicamente dominada pela pirataria.
Essa “privataria” toda foi descoberta num vasto novelo cujo fio inicial foi puxado pelo repórter quando ele esteve a serviço de uma reportagem investigativa, encomendada pelo jornal Estado de Minas, sobre uma rede de espionagem estimulada pelo ex-governador paulista José Serra para levantar um dossiê contra o ex-governador mineiro Aécio Neves, que estaria tendo romances discretos no Rio de Janeiro.
O dossiê teria a finalidade de desacreditar o ex-governador mineiro na disputa interna do PSDB pela indicação ao candidato à Presidência da República, e levou Ribeiro Jr. a uma série de investigações muito mais amplas, envolvendo Ricardo Sérgio de Oliveira, ex-tesoureiro das campanhas de José Serra e Fernando Henrique Cardoso, o próprio Serra e três de seus parentes: Verônica Serra, sua filha, o genro Alexandre Bourgeois e o primo Gregório Marín Preciado. Serra e seu clã são o assunto central do livro, mas as ramificações e consequências sociais e políticas das práticas que eles adotam são vastas e fazem com que o leitor comum fique, no mínimo, estupefato.
Sem dúvida, o brasileiro padrão, mediano, que paga seus impostos, trabalha dignamente e luta pela vida com dificuldades imensas estará longe de compreender o complexo mundo de aparências e essências, fachadas e bastidores da corrupção política e empresarial, e toda a sofisticação desses crimes públicos que passam por “lavanderias” no Caribe, e, neste caso, o estilo objetivo e jornalístico de Amaury Ribeiro Jr. é de grande ajuda para que as ações pareçam inteligíveis para qualquer pessoa mais instruída.
Públicos e notórios
Um dos principais méritos do livro é descrever toda a trajetória que o dinheiro ilícito faz, das offshores a empresas de fachadas no Brasil, e da subsequente “internação” desse dinheiro nas fortunas pessoais dos envolvidos. Neste ponto, o livro de Ribeiro Jr., embora não tenha nada de fictício, segue a trilha de livros policiais e thrillers sobre corrupção e bastidores da política, já que o leitor pode acompanhar o emaranhado e sentir-se recompensado pelo entendimento.
O livro, aliás, tem um início que de cara convida o leitor a uma grande jornada de leitura informativa e empolgante, revelando como Ribeiro Jr., ao fazer uma reportagem sobre o narcotráfico na periferia de Brasília, a serviço do Correio Braziliense, sofreu um atentado que quase o matou e, descansando desse atentado, voltou tempos depois a um jornal do mesmo grupo, Estado de Minas, para ser incumbido de investigar a rede de espionagem estimulada por Serra, mencionada no início. É o ponto de partida para tudo.
O que este A Privataria Tucana nos traz é uma visão contundente e realista como poucas dos bastidores do Brasil político/empresarial. O desencanto popular com a classe política, nas últimas décadas, acentua-se dia após dia, e um livro como este só faz reforçá-lo. Para isso, oferece todo um manancial de informações e revelações para que o leitor perceba onde foi iludido e onde pode ainda crer na humanidade, pois, se a classe política sai muito mal, respingando lama, dessas páginas, ao menos o jornalismo investigativo, honesto e necessário, prova que os crimes de homens públicos e notórios não ficam para sempre convenientemente obscurecidos. Há quem os desvende. E quem tenha coragem de revelá-los.
***
Trecho do livro – Capítulo 11
Derrotado na disputa à Presidência da República, José Serra gastou boa parte da campanha eleitoral de 2010 resmungando contra “espiões” que estariam bisbilhotando a vida de sua filha Verônica e de ilustríssimas figuras de seu partido. Sua aliada, a mídia encarregou-se de reverberar seus protestos, turbinando-os com altos decibéis. A arapongagem teria raiz no “núcleo de inteligência” montado por petistas, cuja existência nunca foi provada. Serra sempre refutou, também com veemência, adotar práticas semelhantes às que supunha ver praticadas por seus adversários.
Mas as relações de Serra com o submundo da espionagem foram levantadas pelo próprio autor. Faltava, no entanto, prová-las. Este capítulo traz essa prova cabal, os documentos inéditos que comprovam definitivamente o que todo mundo sempre soube. Serra costuma recorrer ao submundo da espionagem para vasculhar a vida de seus adversários políticos.
A papelada cedida ao autor pelo jornalista Gilberto Nascimento evidencia que o então governador paulista contratou, sem licitação, por meio da Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo (Prodesp), a empresa Fence Consultoria Empresarial. A Fence é propriedade do ex-agente do Serviço Nacional de Informações (SNI), o legendário coronel reformado do Exército Ênio Gomes Fontelle, 73 anos, conhecido na comunidade de informações como “Doutor Escuta”.
A empresa do “Doutor Escuta” foi contratada por R$ 858 mil por ano “mais extras emergenciais” – pagos pelo contribuinte – no dia 10 de julho de 2008. Vale lembrar que nessa época a vida particular do ex-governador de Minas Gerais Aécio Neves estava sendo espreitada por arapongas no Rio de Janeiro, onde a Fence está sediada. Talvez isso explique por que a Prodesp tenha invocado “inelegibilidade” para contratar a empresa do araponga sem licitação.
Em outras palavras, a Prodesp afirma que o “Doutor Escuta” não tinha concorrentes à altura para realizar o serviço. Conforme o contrato, entre outros serviços, a Fence é responsável pela “detecção de incursões eletrônicas nas instalações da Prodesp ou em outras localizações de interesse da empresa”. Isto significa que a empresa tem como acessar os dados pessoais de funcionários públicos, de juízes e até de parlamentares por uma simples razão: a Prodesp é a responsável não só pela folha de pagamento, mas também por todos os serviços de informação do Estado.
Ou seja, o contrato concede à firma do “Doutor Escuta” o direito de invadir esses dados na hora que bem entender. Até o fechamento deste livro (final de junho) o governador Geraldo Alckmin (PSDB) mantinha o contrato com a empresa de Fontelle.
E o que o delegado federal e ex-deputado, também federal, Marcelo Itagiba, tem a ver com isso? A resposta quem fornece é o próprio currículo do coronel. O “Doutor Escuta” jacta-se de haver integrado o seleto grupo de arapongas que Serra, quando era ministro da Saúde de FHC, montou na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Sob a batuta de Itagiba, além do coronel Fontelle, estavam ainda mais dois personagens destas páginas. Um deles, o ex-agente do SNI Fernando Luiz Barcellos, de alcunha “agente Jardim”. E… adivinhe quem mais! Sim, ele mesmo, o delegado Onézimo das Graças Sousa, aquele mesmo frequentador do restaurante Fritz, da confeitaria Praline e das páginas da Veja e dos jornalões em 2010.
O ninho de arapongas da Anvisa foi desativado pelo próprio Serra, o que aconteceu após a imprensa denunciar que a vida privada de servidores do Ministério da Saúde e de desafetos do então ministro – entre eles seu colega, o ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, falecido em 2010 – estaria sendo esquadrinhada. Na época, o argumento de Serra para a arregimentação de arapongas foi o medo. Receava ser grampeado por representantes das indústrias de medicamentos, que teriam sido contrariados por medidas do governo.
Coincidentemente, o “Doutor Escuta” e os demais pássaros foram contratados em 2002, quando partidários do PFL (atual DEM) denunciaram a suposta vinculação de setores do governo do PSDB com os grampos fatais à candidatura pefelista à Presidência da República. Teriam levado a Polícia Federal a descobrir que a empresa Lunus, de propriedade da candidata Roseana Sarney e de seu marido Jorge Murad, guardava R$ 1,34 milhão em seu cofre. Suspeita-se que o dinheiro alimentaria a campanha do PFL, implodida ali mesmo pela apreensão.
O “Doutor Escuta” vem de longe. Foi no período do presidente João Baptista Figueiredo que ele se integrou à comunidade de informações. Entrou pelas mãos do ex-ministro-chefe do SNI, Octávio Medeiros. Seu rumo foi o Garra, braço armado das ações clandestinas e a arma mais letal do SNI durante a ditadura. Fontelles recebeu a tarefa de modernizar o arsenal tecnológico do órgão. Como seu próprio codinome esclarece, o “Doutor Escuta” comandou uma equipe de trabalho que desenvolveu aparelhos de escuta com tecnologia nacional que substituíram os importados.
Faziam parte do seleto grupo do Garra os coronéis Ary Pereira de Carvalho, o “Arizinho”; e Ary de Aguiar Freire, acusados de participar do complô que resultou no assassinato do jornalista Alexandre Von Baumgarten em outubro de 1982. Dois meses antes de morrer, o jornalista compôs um dossiê. No chamado Dossiê Baumbarten, os dois Arys são acusados de terem participado da reunião em que foi selada a morte do jornalista.
O sargento Marival Dias, do CIE (Centro de Informação do Exército), soube da morte do jornalista antes mesmo de seu desaparecimento ser anunciado. Disse ao autor que Baumgarten teria sido executado pelo “Doutor César”, codinome do coronel José Brant, também do Garra, a exemplo de Fontelles. Agente do CIE em Brasília, Dias teve acesso a um informe interno onde se afirmava que a morte se devia a Brant.
Em uma operação do Garra para intimidar Baumgarten, o “Doutor César” teria se excedido e matado o jornalista. Isto o teria obrigado a eliminar duas testemunhas: a mulher de Baumgarten, Janete Hansen, e o barqueiro Manuel Valente. A reportagem publicada na revista IstoÉ nunca foi desmentida.
Aos seus clientes, o coronel Fontelles costuma dizer que sua empresa presta serviços de contraespionagem e não espionagem. Como veremos mais à frente, foi justamente esse trabalho, ou de contraespionagem, que acabou envolvendo o autor no episódio da suposta quebra de sigilo de Verônica Serra durante a campanha presidencial de 2010.
PS: No momento, o que se tem discutido nos meios “livres” de informação é por que a chamada grande mídia – FSP, Estadão, Veja, Globo, Época, IstoÉ, etc. -, não estão dando espaço para o assunto. Até agora não se ouviu um “pio” destes meios, com reportagens, ou de seus colunistas, com opiniões e análises do livro-bomba. Dizem que se fosse o contrário, quer dizer se envolvesse gente do PT e o Governo Lula, por exemplo, o tema seria manchete e chamadas vários dias em jornais, revistas e TVs.
Até.
Comentários fechados.